De criança a anjo ...

Passaram 11 anos, 11 anos e parece-me que foi hoje!!!

Lembro-me de mim no meu quarto, não me lembro do que estava a fazer, as minhas recordações começam com o toque do telefone na sala... Um toque, na altura tão banal, mas que me iria mudar, me iria fazer crescer, um toque que me apresentou a mais dura realidade da vida: o final desta!!

Do outro lado do telefone ouvi uma voz tremida, uma voz que transbordava um misto de tristeza, angústia, raiva, revolta, um misto de sentimentos que eu não percebi que eram de perda, um sentimento que, com a inocência e alegria dos meus 10 anos, eu não conhecia!!

Tal como a minha avó me pediu passei o telefone à minha mãe e fiquei ali, sentada no chão, aliás como sempre fazia, à espera de saber o que se passava! Percebi, senti que era grave quando vi as lágrimas a rolarem pela cara da minha mãe e ela apenas a conseguir pronunciar uns, para mim, inconclusivos sim ... não ... vamos ...

Quando a minha mãe pousou o telefone fiquei, em silêncio, a olhar para ela, não disse o habitual conta!!! fiquei à espera... minutos depois saiu a frase que me fez gelar por dentro "o David morreu"!!!

Naquele instante eu percebi aquilo que tinha sentido na voz da minha avó! De repente senti-me invadida por um sentimento extremo de revolta... porquê?! porquê ele?! porque não o conseguiram salvar?! Ainda hoje sinto essa revolta!

O David tinha 2 anos e meio, uma energia que fazia pensar se seria hiperactivo, uma personalidade forte, uma rebeldia que fazia prever este destino! Ainda hoje não se consegue perceber como foi ele encontrar aquele frasco de 605 forte (um veneno utilizado na agricultura), a uma altura que ele não chegava e depois de abrir uma porta com uma tranca que ele não conseguia levantar, dúvidas que para sempre irão persistir na minha cabeça juntamente com aquele 'porquê ele'!!

Vivi, talvez até demais, toda a envolvente da morte do meu primo! Quis saber, como, porquê, onde, como estava, como ficou, quis ver, quis ir... e depois nada daquilo me saía da cabeça, as imagens, os sons agonizantes, as pessoas... e depois guardei tudo para mim!
Nunca dei a entender o quanto me custou perder este primo, escondi sempre os sonhos que tive, não queria que pensassem que aquilo me tinha transtornado! Escondi sempre a ansiedade que a partir daí o toque do telefone me provocava, o medo de voltar a perder alguém... Passado uns tempos comecei a habituar-me à ideia de ter perdido alguém, nunca esqueci, nunca se esquece, aquele sorriso, aqueles caracóis negros, aquele gosto por futebol, aquela rebeldia e vivacidade tipicas de uma criança com 2 aninhos! Quando me comecei a habituar à ideia senti que tudo aquilo de certa forma me tinha feito crescer um pouco, aquela realidade apresentada, aquele mundo que para mim pertencia só aos adultos, sim, porque com 10 anos não se pensa na morte de ninguém, muito menos uma criança de 2 anos!

A única certeza que temos na Vida é que um dia vamos Morrer, mas não à realidade mais dura que é ver partir alguém que faz parte de nós, da nossa Vida, aí morremos também um pouco...